Um grande negócio: a rede de lucro por trás das internações involuntárias de dependentes de drogas
O serviço acontece em duas vias, por meio das redes sociais ou dentro de grupos de Narcóticos Anônimos (NA), segundo dependentes que já trabalharam com isso entrevistados pela reportagem. “Esse serviço surgiu como uma consequência da remoção, pois se a pessoa dissesse que não precisava de resgate, a gente não deixava de encaminhar, mas também não ganhava. Então, as clínicas passaram a oferecer comissão pelo encaminhamento”, explicou João, que depois da própria internação foi integrado ao mercado.
Fabrício Selbmann, do Grupo Recanto, diz que o serviço é mais comum e profissionalizado, com empresas dedicadas a isso, em São Paulo. Lá, o valor cobrado por indicação é 10% do tratamento. “Eu acredito que isso não tenha nenhuma coisa negativa no processo. É uma estrutura de marketing. O que é preciso saber é se as clínicas são boas. Não é uma indicação com comissão. São duas empresas fazendo parceria de negócio”, conta.
A Retruco descobriu vários serviços autônomos nas redes sociais. Entrou em contato com três pessoas, que enviaram fotos de clínicas parceiras e ofereceram descontos e facilidades de pagamento ao iniciar a tratativa com o familiar no Whatsapp. As pessoas são insistentes, pedem para falar com um parente, perguntam a classe social da família e o plano de saúde. No dia seguinte ao primeiro contato, costumam enviar novas mensagens, mas preferem e insistem por ligações.
A reportagem também entrou em contato com oito clínicas para saber o valor das comissões pagas. Algumas delas tentaram despistar, outras confirmaram a prática sem receio. A clínica Há Esperança paga R$ 1 mil. A Renascer afirmou que não trabalha com comissões, embora busque nas redes sociais por captadores. O Centro Terapêutico Nova Aurora paga R$ 500, caso o paciente fique internado no primeiro mês. Todos os contatos foram feitos duas vezes. O Centro Terapêutico Elo se mostrou interessado em ampliar a rede de captadores, mas disse que o valor fechado depende de cada caso.
As conversas públicas nos grupos de Facebook não mencionam os valores. Nas redes sociais, os captadores postam telefones de contatos e até a exposição de algumas situações, como a busca por uma clínica para internação involuntária de um adolescente de 16 anos publicada no grupo Febraci - Eu fui salvo por uma internação involuntária, em 2018. “Usuário de maconha, perfil do rapaz é tranquilo (...) Meu maior problema é o translado de remoção, se alguém puder me dar uma ajuda”, diz a postagem.
Roberto Brunelli, vice-presidente da Febraci, afirmou que não recomenda o trabalho de captação. Para ele, “o captador não vai ter o cuidado de respeitar os direitos dos usuários e familiares”. Contudo, diz a recomendação não tem obrigatoriedade de ser seguida. No grupo que mantém no Facebook, a Febraci não impede a ação dos captadores. “As pessoas instigam a ambição do outro. Todo mundo conhece alguém que precisa de tratamento. E isso incita o profissional que trabalha por dinheiro. Tem gente que nem liga mais qual é o melhor lugar, eles olham o que paga mais. Eu chamo, brincando, de garimpeiros de zumbi”, resume João, agora defensor do método.
Infográfico: Gabriella Borges (@gabirellas)
O mercado é alimentado por ex-pacientes
João, agora com 43 anos, abriu uma empresa de resgate e captação. A jornada dele é exemplo de muitas. Ao concluir o tratamento, começou a trabalhar em clínicas e chegou a ser gerente de onde foi paciente. Passou por sete instituições como trabalhador, em Pernambuco e outros estados. Até o começo da pandemia, estava há um ano sem usar as substâncias. Vivia espalhando banners na internet em busca de clientes.
Ao ser questionado, João é receoso em mostrar as propagandas que cria. “A empresa é pequena, uma ferramenta do Google Meu Negócio. Tenho um texto que desenvolvi, dizendo que se você tem problemas, podemos ajudar.” O trabalho forte é na abordagem por telefone. Ele tem um catálogo de clínicas parceiras que apresenta ao fazer o que chama de anamnese. Mas João não tem formação em saúde, é desenvolvedor de hardware. O importante é saber se o paciente tem plano de saúde e qual o poder aquisitivo da família. “Eu tenho quatro comunidades, de vários preços. É um trabalho de triagem, de acordo com o que a família pode pagar e o perfil da pessoa.”
Depois de escolher a instituição para cada caso, oferece o resgate. De Petrolina para João Pessoa, cobra R$ 2,5 mil, mas diz que é 40% abaixo da prática do mercado. A equipe dele é toda formada por ex-paciente que concluíram o tratamento e estão em abstinência. O que é cobrado é dividido igual entre todos. O carro é cedido por um terceiro. O serviço é de risco, assume. “Já fui fazer remoção de um cara armado. É um trabalho árduo, eu sempre tento levar conversando. Tenho tido bastante êxito.”
Se houver resistência, João adota táticas. “Fazemos a contenção diante dos pais. Na verdade, peço para a mãe sair, pois a mulher geralmente tem um coração um pouco mais mole”, opina. Se for preciso usar a violência, o que admite acontecer, ele pede a autorização familiar antes. “As pessoas às vezes dizem que vão matar a gente quando sair, mas dois ou três meses depois aparecem chorando para agradecer”, conta.
Antes da pandemia, João estava empolgado com uma nova empreitada, disse que ia largar o resgate para se dedicar a uma clínica. Chegou a enviar para a reportagem informações sobre a unidade, em Petrolina. Da última vez que manteve contato, em maio, pediu divulgação. Em junho, a Retruco tentou saber o status da abertura do serviço. O telefone de João já não pertence a ele, nem a clínica. João recaiu.
Internação involuntária foi ampliada no Brasil, mas dados são desconhecidos
A lei 13.840, sobre condições de atenção aos usuários e financiamento das políticas sobre drogas, sancionada pelo governo Bolsonaro em junho de 2019, ampliou a possibilidade de internação involuntária da pessoa em uso abusivo de álcool e outras substâncias psicoativas. Por outro lado, falta fiscalização e dados abertos sobre o tema no Brasil. O Ministério da Saúde afirma não ter dados sobre quantas internações involuntárias são feitas no país. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) também. A Secretaria de Saúde de Pernambuco (SES-PE) só tem dados sobre internações compulsórias, aquelas solicitadas pela Justiça. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tampouco tem dados de quantas solicitações judiciais foram feitas para a União ou os estados custearem o método.
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